Num distante 11 de Setembro, nos fins do Século XIX, nasceu a pequena Maria Deodorina. Batizada em Itacarambi, nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo. Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins é o nome completo da personagem Diadorim, amor secreto do circunspecto e reflexivo Riobaldo, ou do jagunço Reinaldo, companheiro de armas do bando de Joca Ramiro.
Por coincidência, ou por alguma outra razão oculta na mente do genial Guimarães Rosa, Diadorim nasceu justamente no dia do Cerrado. E, portadora de uma rara sensibilidade, Diadorim conseguia enternecer o coração do jagunço matador de gente com os brilhos da noite, a beleza das muitas flores e a alegria das aves. Se Riobaldo passou a enxergar a beleza do Sertão, muito se deveu à maneira como os olhos verdes de Diadorim viam o verde do mundo, mesmo em uma realidade de sangue e ódio.
Embora muitas pessoas ainda imaginem que o Romance Grande Sertão: Veredas tenha como cenário o semiárido (talvez pelo uso do termo "Sertão"), praticamente todo o enredo se passa nos Cerrados de Minas Gerais, com incursões na Bahia e em Goiás. Sertão era o ermo, a solidão. Na cosmologia Rosiana, o Sertão é o âmago do coração, o ermo dos sentimentos, o isolamento da alma, a sequidão da existência, enquanto as Veredas são os caminhos que permitem que esse interior oculto e sombrio seja alcançado, tocado e refrescado pelas águas cristalinas que alegram a alma e nutrem os buritis, donos de toda a beleza. O Romance Grande Sertão: Veredas é considerado um dos 100 livros mais importantes da humanidade.
João Guimarães Rosa possui uma biografia quase tão interessante quanto seus livros. Assume cargo de diplomata no início da década de 1930 e abandona a medicina. Chega a ser Cônsul em Hamburgo antes da Segunda Grande Guerra. Junto com a segunda esposa, salva diversas famílias Judias, protegendo e facilitando a fuga, inclusive para o Brasil, de pessoas perseguidas pelo partido Nazista. Consegue retornar ao Brasil em 1942. Como diplomata, ocupa diversos cargos, em diferentes partes do mundo, mas sempre em contato com o povo e as paisagens do interior do Brasil, seja acompanhando tropas, seja mantendo uma intensa correspondência com o pai, dono de um comércio de secos e molhados em Cordisburgo, Minas Gerais, onde hoje está o Museu Guimarães Rosa. Curioso e detalhista, suas obras são um amálgama de rico enredo criativo com fatos, pessoas e lugares reais.
Devido a esse aspecto, é possível identificar nos livros de Guimarães Rosa, especialmente do riquíssimo Grande Sertão: Veredas, os locais onde os eventos descritos foram imaginados e se desenvolveram. Tal aspecto é hoje explorado turisticamente por pessoas, cidades e empresas que conduzem um séquito quase religioso de fãs de Guimarães Rosa aos confins de Minas Gerais. Um dos roteiros mais interessantes é apresentado pelo escritor mineiro Alan Viggiano, que reconstrói parte do roteiro geográfico percorrido por Riobaldo Tatarana no seu tempo de jagunço.
Partindo da premissa de que grande parte das localidades, rios e serras citados em Grande Sertão: Veredas são reais e que João Guimarães Rosa, como funcionário do Itamaraty, tinha acesso às melhores bases cartográficas da época, como aquelas produzidas pelo Serviço Geográfico do Exército, o amigo Guilherme Braga Neves desenvolveu sua monografia de graduação buscando verificar o quanto ainda resta do Sertão descrito por Guimarães Rosa, se essa paisagem ecológica ainda se parece com o retratado pelo minucioso, detalhista e observador Riobaldo. Tão relevante quanto, é saber se essa paisagem, tão importante como identidade e valoração cultural de uma vasta região, contou com algum zelo na forma de políticas de conservação, ou se foi abandonada à sua própria sorte...
Para tanto, Guilherme registrou cuidadosamente os povoamentos, acidentes geográficos, fazendas e outras indicações do território citados no livro. Riobaldo cita 21 cidades ao longo da vida, sendo que as localizadas nos pontos extremos foram usadas para criar o polígono mínimo que representa o Sertão de Guimarães Rosa. Essa poligonal foi estimada em quase 26 milhões de hectares, em grande parte de Minas Gerais, mas também no Oeste da Bahia (hoje MATOPIBA), Goiás e parte de Goiás onde hoje é o Distrito Federal.
Dentro dessa paisagem, são citados mais de 60 cursos de água, dentre rios, córregos e lagoas, além de 14 localidades que foram elencadas por Guilherme como as mais relevantes à sequência de fatos relatadas na obra, sendo eles o Porto do Rio de Janeiro, córrego do Batistério, Fazenda Santa Catarina, Guararavacã do Guaicuí, Liso do Sussuarão, João Pinheiro (Serra dos Alegres e Serra das Maravilhas), Ribeirão Galho da Vida, Fazenda dos Tucanos, Os-Porcos, Cristalina, Itacambira, Fazenda do Hermógenes, Tamanduá-tão, e Paredão de Minas. Nestas localidades, Guilherme avaliou a mudança na paisagem com base no uso de solo, a partir de imagens de satélite.
Para o registro destas localidades foi necessário avaliar diversas bases cartográficas, sendo que as cartas do Serviço Geográfico do Exército foram especialmente úteis. Muitas destas localidades são apontadas pela primeira vez como, por exemplo, o local do nascimento de Riobaldo. Outros locais apontados por Guilherme não correspondem àqueles sugeridos por outros estudiosos da obra de Guimarães Rosa, como o Liso do Sussuarão, localizado na Bahia e não em Minas Gerais, em acordo com o próprio livro e à base cartográfica consultada.
O resultado reflete o que ocorre em todo o Cerrado. As paisagens naturais do Sertão foram fortemente modificadas pela atividade humana. O Sertão das belezas sem dono foi tomado e fechado em arames. Acabaram as praias de rio, onde o manuelzinho-da-crôa fazia festa... Hoje, o fogo desembestado encobre o céu, ocultando a lua que, de tão clara, poderia cunhar dinheiro... Os campos com cheiro de flores, a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas, foram substituídos por monoculturas transgênicas nutridas a agrotóxico...
Bravo mesmo, ainda hoje, é o Liso do Sussuarão... Localizado no Município de Cocos, na Bahia, logo adiante do rio Carinhanha, com seu chão de areia branca, já está na mira do avanço da mesma lógica de agronegócio que arrasou o oeste da Bahia. O que se espera para o futuro?
Pouco da história pode ficar no futuro. Dentro dos limites descritos no livro, existem 39 unidades de conservação, de 10 diferentes categorias, sendo 15 Parques Estaduais, oito Áreas de Proteção Ambiental e quatro Estações Ecológicas. Grande destaque deve ser dado ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas, localizado no coração do Sertão de Riobaldo. No entanto, as 26 unidades de Proteção Integral presentes nessa paisagem protegem pouco menos de 890 mil hectares, o que corresponde a 0,034% do Sertão. Considerando todas as unidades de conservação, apenas 1% dessa paisagem conta com o status de área protegida. No entanto, é sabido que unidades de conservação de uso sustentável não limitam o desmatamento do Cerrado. Desta forma, é urgente a criação de novas unidades de conservação de proteção integral nessa região. Neste caso, é importante a atuação do Governo Federal e do Governo de Minas Gerais, estado com forte vínculo de identificação com o autor e com sua obra. Por outro lado, em uma paisagem fortemente ocupada por atividades antrópicas, é importante a atuação de proprietários de terra visando a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Neste caso, além do Patrimônio Natural, seriam também Reservas Particulares do Patrimônio Cultural.
Se o demônio se mostra nas Veredas-Mortas, é preciso coragem para enfrentar o avanço da morte. As Veredas-Altas mostram que não existe o demônio, mas apenas escolhas de homem humano. E, como gente vivente, temos capacidade de escolher outro destino aos Rios, Serras, Árvores e Bichos do Cerrado. Travessia. Travessia que se põe para quem nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo.
http://www.oeco.org.br/colunas/reuber-brandao/o-agronegocio-matou-o-grande-sertao/
Cerrado
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- UC Grande Sertão Veredas
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