Ingredientes amazônicos revolucionam a merenda escolar
Versátil e nutritiva, a farinha de babaçu ganha destaque no cardápio das escolas públicas do Pará, principalmente depois de misturada ao cacau
por Elizabeth Oliveira
Publicada em 23 de julho de 2019, 16:50
Altamira (PA) - O município de Vitória do Xingu foi um dos primeiros a apostar no potencial da farinha de babaçu para melhorar o valor nutricional da merenda escolar. Mas para garantir a utilização cotidiana desse ingrediente, produzido pelas comunidades extrativistas integrantes da rede de cantinas da Terra do Meio, no sudoeste do Pará, foi preciso ousar no cardápio, indo além do tradicional mingau. Após dois anos de testes, ações de capacitação com as merendeiras e outras iniciativas para motivar a criatividade no preparo das refeições, parece que o passo foi acertado.
Além de confirmar a versatilidade da farinha de babaçu foi possível perceber que, esse ingrediente amazônico, ainda pouco valorizado na culinária regional, ganhava mais sabor e opções de aplicabilidade quando misturado ao cacau. Essa combinação ampliou as possibilidades de utilização em alimentos mais saudáveis e também de fácil aceitação.
Conquistar o paladar dos alunos foi uma etapa difícil, como todos já sabiam. Mas a missão foi cumprida. A partir de agora, o grande desafio envolve a garantia da oferta dos dois ingredientes amazônicos que já foram transformados em uma mistura pronta que pode ser usada no preparo de bolos, tortas, biscoitos e outros alimentos. Diante das perspectivas positivas, a rede de cantinas da Terra do Meio já está mobilizada para tentar ampliar a produção e conquistar não somente mais escolas da região, mas outros segmentos de consumidores.
Merendeiras foram capacitadas pela chef Bela Gil
Cinthia Magali Moreira Hoffmann, secretária de Educação de Vitória do Xingu, afirma que há avanços alcançados no processo de melhoria da alimentação servida aos 4,8 mil alunos de 23 escolas do município. Um divisor de águas para a mudança de padrão ocorreu em 2017, quando a chef e apresentadora Bela Gil capacitou as merendeiras, ressaltando a importância nutricional do babaçu e a sua versatilidade culinária. A partir desse movimento, várias receitas foram sendo testadas e aprovadas pelas cozinheiras, comprovando que a sua possibilidade de uso em pratos doces e salgados é muito mais ampla do que se imaginava.
Um livro com 16 receitas doces e salgadas preparadas com farinha de babaçu criado por Alex Atala, Bela Gil e Neide Rigo tem contribuído para popularizar o uso do ingrediente. A publicação que está disponível para download é parte da campanha Da Floresta para a Merenda, desenvolvida pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com as associações agroextrativistas da Terra do Meio, para promover ações de capacitação e difundir a importância desse ingrediente amazônico rico em ferro e outros nutrientes.
"Buscamos destacar no processo de aprendizado com as merendeiras e a comunidade escolar que, impulsionar o consumo dos produtos regionais, além de fortalecer a economia local e melhorar a merenda, ajuda a manter a floresta de pé", afirma a secretária.
Em dois anos, foram adquiridas pelo município paraense duas toneladas de farinha de babaçu da rede de produção comunitária, sendo parte desse volume acrescida de cacau, a partir de 2018. "Atualmente usamos esses ingredientes em molhos, bolos, biscoitos e outros alimentos que já foram aprovados pelos alunos," acrescenta. A farinha pura serve para o preparo de massas como as de panquecas e coxinhas de galinha e também torna mais cremosos pratos como vatapá, estrogonofe, caldos e sopas.
"Estamos testando um achocolatado que não deixa nada a desejar em relação aos industrializados", adianta a secretária ao comentar as inovações trazidas pela adição de cacau à farinha de babaçu. A produção de sorvetes também está em testes.
Concurso de merendeiras tem final movimentada em Altamira
Para inovar nos cardápios, além do processo de capacitação, até um concurso de receitas foi organizado para estimular a criatividade das merendeiras nas cozinhas das escolas de Vitória do Xingu. O resultado da disputa envolveu nove finalistas. Na primeira semana de junho elas apresentaram seus pratos doces e salgados que puderam ser degustados e escolhidos pelo público em um shopping center de Altamira.
A disputa envolveu criações como rocambole de chocolate, bolo de leite, macarronada, carne ao molho madeira, torta de frango, entre outras. Mas a receita de estrogonofe de frango com farinha de babaçu, preparada pela merendeira Edineide da Silva, foi a vencedora. Pela premiação, ela vai poder participar de um evento gastronômico em São Paulo para atividades de capacitação.
Segundo a nutricionista do município, Daniele Damasceno, uma entusiasta dessa proposta, foi fundamental estimular a criatividade das cozinheiras. "Conseguimos ir muito além do mingau, vencendo resistências dos alunos e das próprias merendeiras. Agora, elas sabem que é possível preparar muitos pratos com resultados surpreendentes. Recentemente testamos uma receita de pudim que ficou extremamente saboroso", comenta.
Para Raimunda Rodrigues, gerente da miniusina instalada na Reserva Extrativista (Resex) Rio Iriri, foi gratificante saber que nove receitas finalistas de um concurso foram preparadas com a farinha de babaçu processada nesse empreendimento comunitário, onde também são beneficiados produtos como castanha-do-pará, óleos, entre outros. "Sabemos que existe um potencial enorme para esse e outros produtos naturais que processamos", observa a gestora que vem sendo considerada uma das principais lideranças da rede de cantinas.
Produção de babaçu pode crescer dez vezes
Diante das perspectivas positivas já sinalizadas por alguns segmentos de consumidores, Derisvaldo Souza Moreira, presidente da Associação Agroextrativista Sementes da Floresta (Aasflor), estimou que a produção de farinha de babaçu da rede de cantinas pode alcançar 60 toneladas anuais. Isso representaria dez vezes mais do que foi produzido entre 2017 e 2018.
Ele explica que cerca de 50 famílias estão atuando na produção de farinha de babaçu na área do assentamento de Uruará, onde é desenvolvido o projeto Sementes da Floresta. Mas nessa área rural há cerca de 2 mil famílias que poderiam aderir ao movimento, respondendo, por pelo menos, 30 toneladas anuais desse ingrediente, segundo estima. "Estamos motivados e esperamos que o mercado olhe com bons olhos para essa rede e valorize ainda mais esses produtos que promovem a economia local e conservam a floresta de pé", observa. Essa iniciativa de agricultura familiar, por exemplo, envolve também a fabricação de xampus e sabonetes de copaíba, além de manteiga de cupuaçu, entre outros produtos com ingredientes amazônicos.
Além dos agricultores vinculados à Aasflor, são parceiros na produção da farinha de babaçu as comunidades ribeirinhas de três Reservas Extrativistas (Rio Iriri, Riozinho do Anfrísio e Xingu) e integrantes da Terra Indígena Cachoeira Seca, do povo arara. Todas essas áreas são diretamente impactadas pela construção da usina de Belo Monte. Já o cacau adicionado à mistura pronta da rede de cantinas é produzido pela Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans), que criou a marca Cacauway, em Medicilândia.
Ademir Venturin, sócio da Coopatrans, explica que, além da potencialidade econômica, o cacau também tem uma grande importância ecológica porque essa cultura agrícola contribui para regenerar terras degradadas. Ele conta que há 40 anos saiu do Espírito Santo para viver no Pará e ainda conheceu os efeitos danosos da indústria canavieira em Medicilândia. Num raio de dez quilômetros ao redor da cidade, onde essa indústria teve um período de apogeu entre 1970 e 1990, ficou um rastro de degradação ambiental após a sua decadência, na década de 2000.
Venturin ressalta que a mata nativa foi sendo reposta junto com o plantio das mudas de cacau que passaram a ocupar a lacuna deixada na economia local trazendo, ainda, inúmeros ganhos ambientais. "A experiência deu certo e hoje temos cacau em terra roxa", comenta sobre o tipo de solo considerado excelente tanto para a cultura canavieira como para a lavoura cacaueira.
Segundo ele, a indústria local consome anualmente apenas 800 toneladas de cacau produzidas pelos sócios (cerca de 8% da produção de Medicilândia) e o restante vai para o mercado convencional, sendo comprado, principalmente, por empresas da Bahia. O estado já foi líder na produção cacaueira no Brasil, até ter as suas lavouras afetadas por uma doença popularmente chamada de vassoura de bruxa, e nos últimos dois anos perdeu esse posto para o Pará que vem ganhando liderança no ranking nacional sem grande alarde.
Os produtos beneficiados pela rede de agricultores têm a marca Vem do Xingu, que visa à valorização da produção comunitária dessa região rica em biodiversidade e diversidade cultural. Contam, também, com o selo Origens Brasil, que, desde 2016, permite ao consumidor acessar informações (via celular ou computador) sobre os produtos e as localidades onde vivem os seus produtores, assegurando, assim, mais transparência na comunicação sobre esse processo de incentivo ao fortalecimento econômico das comunidades tradicionais da Amazônia e aos princípios de comércio justo. O selo foi agraciado com o Prêmio Internacional de Inovação para a Alimentação e Agricultura Sustentáveis da Organização das Nações Unidas (ONU). A premiação foi entregue, em 26 de junho, durante a 41ª Conferência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em Roma, sede dessa agência da ONU.
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Bacia do Xingu
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