Branqueamento ameaça corais de Abrolhos

OESP, Metrópole, p. A22-A23 - 21/08/2016
Branqueamento ameaça corais de Abrolhos
Causado pelo aquecimento, fenômeno foi intenso neste ano

Herton Escobar

Pairando sobre um recife no mar de Abrolhos, o biólogo Rodrigo Leão Moura aponta para uma colônia desbotada de corais-de-fogo, depois arrasta o dedo indicador como uma navalha pela própria garganta, em sinal de guilhotina. A visibilidade debaixo d'água não é das melhores, mas a mensagem é clara: o coral está morto.
Nem é preciso abrir uma investigação para determinar a causa. As evidências estão espalhadas à nossa volta por todo o recife, na forma de corais anêmicos, brancos como fantasmas.
O fenômeno é causado pelo superaquecimento da água do mar. Quando a temperatura passa de 28oC por vários dias, os corais perdem as microalgas fotossintetizantes que vivem dentro de suas células e dão cor aos seus tecidos. Sem elas, os corais não conseguem produzir energia suficiente para sustentar seu metabolismo e ficam debilitados, com se fossem árvores sem folhas. O resultado pode ser passageiro ou pode ser fatal, dependendo da duração do evento e de uma combinação de fatores ambientais e genéticos que os cientistas ainda não compreendem totalmente.
Moura e seus colegas da Rede Abrolhos estão na água justamente por isso. Eles querem entender como os corais de Abrolhos estão resistindo (ou não) ao branqueamento, e o que isso significa em um cenário de longo prazo, em que as mudanças climáticas prometem tornar eventos de anomalia térmica desse tipo cada vez mais frequentes. "O que a gente está vendo é um sinal claro de perda de saúde do ecossistema", alerta Moura, professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
É natural que eventos de branqueamento aconteçam de tempos em tempos. O que preocupa é a frequência desses eventos, a quantidade de corais afetados e o acúmulo disso com outros fatores de estresse ambiental, como sobre pesca e poluição, que reduzem a capacidade dos corais de sobreviver ao branqueamento.
"Desde 1997, eu venho pra cá praticamente todos os anos e essa escalada de degradação está cada vez mais intensa, cada vez mais rápida", alerta Moura. "O branqueamento em massa dos recifes de Abrolhos mostra que esse ecossistema está se aproximando de um colapso de grandes proporções."
Localizado entre o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, com 46 mil quilômetros quadrados, o Banco dos Abrolhos é a região de maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul. Abriga uma série de ecossistemas recifais únicos, com espécies e configurações estruturais que não existem em nenhum outro lugar do mundo.
Esse foi o primeiro branqueamento em massa registrado na região desde que os pesquisadores passaram a monitorar sistematicamente os recifes de Abrolhos, em 2003. O fenômeno costuma ocorrer em anos de El Niño, como foi o caso agora. Eventos de branqueamento foram registrados em várias partes do mundo ao longo de 2015; e em março deste ano a ameaça chegou a Abrolhos.
Alertados pelo sistema Coral Reef Watch, da Agência Nacional Atmosférica e Oceânica (NOAA) dos Estados Unidos, cientistas se organizaram para monitorar o fenômeno. Pesquisadores da Rede Abrolhos, que já haviam feito sua expedição de rotina à região em fevereiro, voltaram para a água em maio e encontraram exatamente o que a agência americana havia previsto: águas superaquecidas e uma quantidade imensa de corais branqueados.
No fim de junho, os cientistas voltaram à região para uma nova inspeção; e mais uma vez se assustaram com o que viram. Sensores instalados nos recifes mostravam que a temperatura da água já estava normal (cerca de 26oC) há dois meses; e ainda assim havia muitos corais branqueados por toda parte.
"A duração do evento me surpreendeu. Não esperava chegar aqui em junho- julho e encontrar um nível ainda tão alto de branqueamento", declara Moura, ao voltar de um mergulho no Recife Sebastião Gomes, 15 quilômetros ao largo de Caravelas (BA).
Sua estimativa preliminar é de que todas as espécies de coral da região foram afetadas, em maior ou menor grau; e 20% delas sofreram algum nível de mortalidade. Fazer um diagnóstico mais preciso é difícil, pois a resposta dos corais ao branqueamento foi extremamente variada, não só no tempo e no espaço, mas também entre espécies e indivíduos.

Mudança de fase. O maior medo dos cientistas é de que Abrolhos esteja em um processo de "mudança de fase", que seria a transformação de um sistema saudável, dominado por corais e onde predomina a construção recifal, para um sistema dominado por algas e outros organismos oportunistas.
"O recife é como um condomínio em construção, que deve ficar sempre crescendo", compara o biólogo Gilberto Amado Filho, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro. "Quando os corais morrem, as algas tomam conta e a construção dá lugar à erosão. O recife passa a ser destruído, literalmente."
Branqueamentos esporádicos e de baixa intensidade não são problema. Mas as mudanças climáticas globais, somadas a um agravamento das ameaças locais, criam um cenário preocupante. "Temos de diminuir a erosão costeira, diminuir as dragagens, coibir a sobrepesca", alerta Amado Filho. "O que vai acontecer com esse ecossistema daqui para frente é responsabilidade da nossa geração; não adianta empurrar esse problema para frente", avalia Moura. O monitoramento científico vai continuar.


RECIFES PRÓXIMOS DA COSTA FORAM OS MAIS ATINGIDOS
Poluição e sobrepesca podem influenciar na capacidade dos corais de sobreviver ao branqueamento: impacto foi menor no Parque Nacional

Não há como impedir que o branqueamento ocorra quando a temperatura esquenta, dizem os pesquisadores, mas é possível influenciar a capacidade dos corais de sobreviver a esses eventos - a chamada resiliência do sistema.
O impacto do branqueamento foi nitidamente maior nos recifes próximos da costa - mais desprotegidos e acessíveis a pescadores - do que nos recifes mais afastados e protegidos do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, onde a pesca é proibida.
Segundo os pesquisadores, isso pode estar relacionado tanto ao efeito da poluição costeira (incluindo o aporte de sedimentos oriundos das operações de dragagem na barra de Caravelas) quanto à menor densidade de budiões e outros peixes herbívoros nesses ambientes costeiros, por causa do excesso de pesca.
Pode-se pensar nesses peixes como jardineiros, que controlam a proliferação de "ervas daninhas" nos recifes. Sem eles, as chances de os corais serem sobrepujados pelas algas em um momento de fraqueza é maior.
"Temos de manter o ecossistema o mais próximo possível de um estado de equilíbrio, sempre, para que ele tenha condições de se recuperar sozinho quando pressionado", diz o biólogo Gilberto Amado Filho, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, membro da Rede Abrolhos.
Os corais são a base biológica fundamental do ecossistema. Sem eles, o recife deixa de ser estrutura viva, dinâmica, em constante transformação, e passa a ser uma estrutura inerte, equivalente a um amontoado de pedras. Se em cima disso sumirem os peixes herbívoros, o recife passa a ser dominado por algas de crescimento rápido, deflagrando um processo de deterioração da biodiversidade de todo o sistema. É como se uma floresta tropical fosse substituída por um terreno baldio.

Pesquisa. Em todas as expedições da rede, os cientistas coletaram amostras de corais branqueados e não branqueados de várias espécies. Algumas foram levadas embora vivas, dentro de saquinhos com água do mar. Outras foram submetidas a um processo de raspagem, em que o tecido do coral é macerado até virar uma gosma e acondicionado em tubinhos, para realização de análises genéticas e caracterização das microalgas fotossintetizantes (chamadas zooxantelas) presentes no coral.
O conhecimento científico sobre os mecanismos biológicos e ambientais que regem essa simbiose entre microalgas e corais ainda é limitado. "Que bom seria se a natureza fosse simples, mas não é", diz o pesquisador Paulo Salomon, especialista em ecologia e microbiologia marinha da UFRJ - destinatário de muitas das amostras.
Em seu laboratório na Ilha do Fundão (RJ), Salomon já cultiva uma coleção de quase 20 linhagens de zooxantelas, que ele usa para experimentos, com o intuito de entender melhor sua biologia e a maneira como elas reagem a diferentes condições ambientais.
Está claro que a simbiose delas com os corais se desfaz quando a temperatura da água ultrapassa 28oC por um determinado período de tempo (uma a duas semanas), mas muitas perguntas seguem em aberto. Não se sabe ao certo se as zooxantelas são expulsas pelo coral, saem por conta própria, morrem, ou se tudo isso acontece ao mesmo tempo em diferentes espécies.
"Estamos separando as peças do sistema e testando cada uma isoladamente para tentar explicar o que está acontecendo", diz Salomon. "É um cenário de muitas perguntas e poucas respostas, por enquanto", avalia o colega Rodrigo Leão Moura, também da UFRJ.

Impactos. O grupo mais afetado pelo branqueamento foi o dos corais-de-fogo do gênero Millepora, muito comuns no topo dos chapeirões - os enormes recifes verticais, em forma de cogumelo, que são uma das marcas registradas de Abrolhos. Em maio, eles estavam quase que totalmente branqueados. Dois meses depois, quando os cientistas voltaram à cena, parte das colônias estava morta, especialmente nos recifes mais próximos da costa. Outra parte estava em recuperação, com destino ainda incerto.
A boa notícia é que os famosos corais- cérebro do gênero Mussismilia, que só existem no Brasil e são espécies-chave dos recifes de Abrolhos, não foram afetados tão duramente pelo branqueamento, apesar de também haver variabilidade nas respostas. "Talvez não seja hora de acender as velas do fim do mundo ainda", diz Moura. Mas o isqueiro já está na mão. / H.E.

OESP, 21/08/2016, Metrópole, p. A22-A23

http://infograficos.estadao.com.br/especiais/recifes-em-risco/
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